— O
que está acontecendo?! — perguntava a voz desesperada que vinha das caixas de
som espalhadas pela sala de comando.
O
pânico não demorou a tomar conta do local com o soar do alarme sonoro de
emergência e das luzes vermelhas que piscavam. Técnicos e operadores corriam em
todas as direções. Alguns ainda tentavam resolver as centenas de problemas que
surgiam do nada, mas a maioria já havia cedido ao caos iminente.
— Ele
quebrou as amarras! Está tentando sair da jaula! — respondeu amedrontada uma
das operadoras pelo microfone em sua mesa, ao mesmo tempo em que digitava
dezenas de comandos, tentando em vão isolar algumas áreas daquela instalação.
— Não
deixem quem escape! Estou... — as pessoas na sala aguardaram ainda alguns
segundos, sem perceber que a comunicação foi interrompida abruptamente.
Em
outra área da instalação, a origem do caos era clara. Em um cômodo que os
funcionários chamavam de “Jaula” fiações estavam expostas no teto, equipamentos
revirados, cacos de vidro espalhados e corpos humanos jaziam no chão. Os que
ainda vivam estavam em seus últimos momentos, mas pensavam que estavam com
sorte, porque sabiam que a criatura que estava em sua frente, apesar de extremamente
poderosa, trajava uma armadura que restringia sua força física e mental.
A
criatura odiava trajá-la. Há muito tempo fora condenada a usá-la, como uma
camisa de força, não demorando em se tornar uma prisão. Não foi muito tempo
depois que criou consciência de si e do mundo ao seu redor fora encarcerado nela.
Os humanos moviam a criatura para vários locais, mas não havia liberdade. Sua
prisão estava logo ali, sempre em contato com sua pele, roubando-lhe o tato.
Mas
não precisava disso. Ninguém a tocaria. Não receberia afeto. A única função do
tato era sentir o frio solitário do metal.
Porém
mesmo sem tato ela sentia dor. Lembrava apenas de um brevíssimo tempo em sua
vida antes da armadura, mas em sua primeira demonstração de poder, sufocaram-na
com aquilo e agora usar seu poder trazia dores de cabeça que chegavam ao seu
âmago. E como se não fosse suficiente estava sempre sendo testado por aqueles
humanos.
Que
tipo de mente doentia iria querer testá-lo, mas ao mesmo tempo limitaria suas
capacidades?
“Quem
sou eu?” foi o que ele pensou durante anos. “Por que eu estou aqui?” repetia
para si mesmo.
Mas
nesse dia, seu pensamento foi outro:
“Eu
estou pronto.”
E por
isso que estava ali naquele momento. Usando seus poderes para segurar uma dúzia
de soldados sem que precisasse encostar um único dedo, apesar da dor que sentia.
Estava disposto a usá-los para ter a chance de descobrir o que ele era de
verdade, mesmo que fosse a última vez que o fizesse.
Ouviu
passos ritmados e pesados se aproximando e parando atrás da porta mecânica do
cômodo em que estava: A jaula, mais uma de suas prisões.
“Eles
estão lá fora... Onde eu devo estar!”
Com o
impulso desse pensamento, estendeu o braço em direção aos soldados caídos a sua
frente e cerrou o punho. Um coro de gritos altos e breves estourou no ar
enquanto os corpos se contorciam, moldados pelo seu punho, implodindo e virando
apenas uma massa amorfa de carne, entranhas e sangue.
Voltou
sua atenção para a saída do cômodo, e com um impulso de raiva em sua mente, fez
a pesada porta de metal ser arremessada para fora como se ali dentro tivesse
sido explodido uma poderosa bomba. A parede oposta fora manchada com densas
gotas sangue fresco dos soldados esmagados.
Os
outros soldados sacaram suas PokéBolas e convocaram uma equipe de Sandslash que
prontamente atacaram com Pin Missile. A criatura quase acharia graça, se
soubesse o que era esse sentimento, quando viu a expressão de choque dos
humanos ao seu redor. Eles não podiam acreditar no que viam: todos os projeteis
atirados pelos seus Pokémon estavam parados no ar, como se tivessem sido
detidos por algum tipo de barreira invisível. Mas não havia barreira. Ele
segurava cada projetil individualmente com sua mente em fúria, e quando decidiu
que já podia soltá-los, fez com que voltassem para a direção que vieram.
Alguns
segundos se passaram. Todos no prédio sentiram que suas cabeças iam explodir.
Alguns desmaiaram e convulsionaram, outros com mais sorte apenas sangraram pelo
nariz e pelas orelhas. Aquela era só uma amostra pequena dos poderes d’A
Criatura: Ele apenas enviara uma mensagem psíquica propagada em onda pelo
prédio.
“QUEM
SOU EU?”
O
prédio inteiro tremeu, mas pela primeira vez naquele dia, não era culpa dela.
***
A
cidade tremera, mas quase ninguém se importou, afinal, eles moravam na Ilha
Cinnabar, terremotos eram comuns aos moradores da pequena cidade que existia
ali. Há alguns milênios, pessoas decidiram se assentar naquela terra. O solo
era fértil e conseguiam plantar de tudo um pouco para sua subsistência. A
distância do continente os deixara longe de qualquer tipo de guerra e intrigas
políticas.
O
único perigo de morar ali era o grande vulcão homônimo, mas há muito ele não
entrara em erupção. Os mais antigos ainda contam histórias que ouviram de seus
avós, que ouviram dos avós deles e assim por diante; de como o vulcão só
atacava se fosse enfurecido, mas que seu espírito era honesto e justo e por
isso os deixara viver em sua terra, contato que fossem boas pessoas.
Duas
décadas atrás, um laboratório foi construído na pequena vila. Cientistas se
interessaram muito pela área e começaram a vim de vários lugares de Kanto para
estudar. Aquilo impulsionou a cidade fazendo-a crescer, mas ainda era uma das
menores de todo o continente, já que não recebiam muitos forasteiros que não
fossem estudiosos ou turistas, ambos só ficavam temporariamente na ilha até
cumprir seus objetivos e voltarem para suas casas no continente.
Os
locais gostavam de rir dos forasteiros que se desesperavam com os tremores
constantes. Aquilo era parte do cotidiano por ali e todos se acostumavam com
isso antes mesmo de aprender a andar.
Por
isso naquele dia, ninguém se importou quando a ilha tremeu.
Pelo
menos da primeira vez.
Logo
os tremores ficaram mais frequentes e mais fortes. Aos poucos as pessoas
começaram a fazer comentários.
“Nossa,
hoje tá tremendo, né?”, perguntavam entre si de maneira despretensiosa.
Mas
logo esses comentários insignificantes deram lugar à preocupação genuína. Uma
sirene rompeu o som do burburinho nas ruas, avisando que todos deveriam buscar
um lugar seguro para se abrigar. Alguns gritos desesperados puderam ser
ouvidos, apesar de poucos. As erupções eram raras, mas todos os nativos dali
faziam treinamento desde pequenos na escola para esse tipo de situação.
O
Grande Vulcão, no entanto, não tinha tempo para se preocupar com protocolos.
Antes de qualquer pessoa ter chance de começar a buscar um local seguro, ele
fez tremer todo seu corpo e rugiu com a força de um trovão que vinha debaixo da
terra, como quem liberava uma imensa raiva. Muitas pessoas cederam ao desespero
e gritaram junto.
Todos
ficaram atônitos ao verem o que acontecia no topo da montanha: uma nuvem de gás
já cobria o céu próximo e pontos cintilantes saltavam e pareciam parte de um grande
show.
E
antes que pudessem esperar uma enorme coluna de terra e detritos se ergueu,
rasgando o chão diante dos olhos de todos. Seu brilho era lindo, mas o
sentimento que transmitia era de terror. A cor da lava era quase hipnótica em
beleza e pavor. Junto dela desceu pela encosta a nuvem piroclástica, uma visão
única de uma fumaça quase sólida formada de gás, cinzas e pedras que prendia a
atenção de quem olhava, mas trazia consigo o toque da morte. Se aquilo era
realmente parte de um show, tinha saído de uma mente insana.
Todos
observaram em choque o topo da montanha. Até hoje ninguém sabe explicar como a
lava e a nuvem de cinzas não se estenderam na encosta em direção à cidade, mas
percorreu quilômetros nas outras direções. Os mais velhos dizem que o Grande
Vulcão devia estar com raiva de algum alpinista sem noção que desrespeitara o
local. Mesmo assim, não dava para explicar a visão que todos tiveram de uma
criatura saindo da nuvem de fumaça, ilesa, voando em alta velocidade para o
norte, cruzando o céu alaranjado do crepúsculo.
***
Rumando
em direção a céu, ele se mantinha em linha reta enquanto cruzava a espessa e
opaca nuvem de gás. Em meio à luta, calor, destroços e fumaça, sua armadura
ruía pouco a pouco, se partindo em pedaços que ficavam para trás e caiam em
direção ao solo. Pela primeira vez a sensação gélida do metal foi substituída
por um imenso calor que fazia arder sua pele, mas o deixava feliz.
Ao
deixar a nuvem de fumaça para trás, a criatura parou por um segundo e observou
a paisagem.
A
porção do prédio que ficava acima do solo estava em destroços, e provavelmente
o que estava no subsolo estaria inacessível, tomado pela gelada água do mar.
A lava
sendo expelida do topo da montanha era linda e perigosa, assim como sua própria
natureza. Ela gostou disso. Era poético.
A
cidade próxima com humanos correndo em desespero, como formigas assistindo a um
pé vindo para esmagá-las. De certa forma, ele se sentiu vingado.
Antes
de continuar seu trajeto sem rumo com o único objetivo de deixar essa ilha e
seu passado para trás, ele teve um último pensamento.
“Eu
sou o Pokémon mais forte do mundo.
Mais
forte até do que o Mew.”

